CAÇADA DE INTOLERÂNCIA: Uma investigação jornalística sobre a violência policial contra terreiros durante as buscas por Lázaro Barbosa
18 a 27 de junho de 2021 - A busca por assassino ou por um culpado?
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Mãe Bel em seu terreiro, casa e templo religioso.
Com a repercussão da mídia e correlação do Lázaro com as religiões de matrizes africanas, inúmeros terreiros começaram a relatar invasões e possíveis casos de agressão. Entre os entrevistados, Pai André, Mãe Beth, Mãe Bel e Pai Francisco trazem relatos de invasões. “Visitas” que ocorreram de maneira truculenta, desrespeitosa e acusatória. Apenas no terreiro do Pai André, os policiais estiveram mais de 10 vezes, num período de 20 dias.
— Na terceira visita em diante, a abordagem mudou, eles vieram mais calmos. Acho que por conta da repercussão na imprensa, depois que comecei a dar entrevistas. Meus amigos brincam que eu sou famoso agora - o idoso conta com uma risada solta, olhos cerrados e de tom leve.
Antes do caso Lázaro, o Pai André nunca tinha passado por uma situação de agressão como essa. Nascido na Bahia, o religioso passou um tempo em São Paulo antes de chegar à capital brasileira. Ele relembra que, mesmo em tempos de perseguição, sempre teve muita confiança nos orixás para cuidar e guiar. A maior lição que Pai André nos deixa é sobre amor e perdão. Em suas palavras:
— Eu abracei a religião pelo amor, não pela dor. Então, por que eu vou criar esse amor na violência? Quando o amor se cria na violência, é o oceano sem água, vira um deserto. E se eu vivesse no deserto, eu não teria hoje as pessoas que tenho do meu lado.
“Visitas” inesperadas - o relato de Mãe Bel
Mãe Bel, 57 anos, é conhecida como a yalorixá do terreiro Ilê Asé Olona, que seria nada mais que uma forma carinhosa de chamar a sacerdotisa de um terreiro. Na tradução, em iorubá, é a junção iaiá que significa “mamãe”. O título combina com a religiosa, “responsável” por mais de 30 filhos dentro do seu templo. O local, localizado em Girassol (GO), fica a aproximadamente 20 km de Águas Lindas do Goiás, afastado da rodovia. Rodeado por árvores e arbustos típicos do Cerrado, mais ao fundo um riozinho - córrego - e uma vista exuberante do céu e da savana brasileira. Com ela, moram duas pessoas: um dos filhos de 15 anos e outra, mais velha, que tem diagnóstico de esquizofrenia e, desde então, está sob os cuidados da sua yalorixá.
O terreiro é um lugar amplo, que foi construído, como descreve a mãe, com amor e em comunidade. A líder religiosa explica que ama ter os talentos de seus filhos em cada detalhe do local. As paredes, por exemplo, pintadas com representação dos orixás e outros símbolos importantes, foram feitas por um dos filhos de Mãe Bel. O piso, recentemente reformado, também foi uma conquista conjunta.
— Somos bem mais que um local para praticar nossa fé, somos uma família.
Na mesma época da invasão ao terreiro do Pai André, Mãe Bel também teve “encontros” com policiais. Inclusive, no período, ela estava se recuperando da covid-19. Homens a pé, armados, gritando e revirando todos os cantos, até pequenos armários, à procura do assassino. Numa quinta-feira à noite, como descreve a sacerdotisa, os agentes chegaram a quebrar sua cerca. Ela conta que, ao todo, apenas naquele dia, chegaram juntos mais de cinco agrupamentos policiais para entrar no terreiro. No dia, estavam apenas ela e seus dois filhos, que moram juntos.
Ela me conta, pausadamente e com olhos tensos, que a maior dor é perder a paz da casa por uma mentira. Os agentes não chegavam para conversar, muito menos pedindo licença. Quando ela percebia, eles já estavam lá dentro, com os dedos apontados para o seu rosto, a frase “Você conhece o Lázaro?".
— Eles queriam abrir tudo, armários e quartos. Eu disse não, não vou abrir assim. Abaixem as armas.
O local diferente da energia comum, era um caos, os animais que moram também no terreiro, latiam sem parar, estressados pelo excesso de pessoas estranhas. Ela lembra que teve a visita de agentes mais educados, outros nem tanto. Mas, o que chamava sua atenção, era o medo que via na polícia. “Eu vi nos olhos deles, eles estavam com mais medo que eu”. A sacerdotisa diz que não tinha medo do Lázaro entrar no seu terreiro, sabia pelos Guias que ele não colocaria os pés lá. Ele até poderia passar perto do rio que tem lote, mas dentro da casa não colocaria os pés.
— Me disseram para não me preocupar com o bandido, que ele não pisaria aqui, mas com a polícia invadindo e entrando... tudo isso foi demais para mim.
Além da recuperação da covid-19, ela também tinha os cuidados pós-cirúrgicos de uma cirurgia de apêndice. “Não foi fácil”. Ao falar a frase, os olhos de Mãe Bel brilhavam, mas não de alegria e nem medo, mas pela dor. Lembranças de um dia de muita confusão, estresse e, principalmente, intolerância. Os agentes entraram revirando todos os locais, a cozinha, sem motivo aparente, chamou atenção. “Eu não tenho ideia do que eles viram lá, mas ficaram fissurados. Eu disse ‘espera’ que eu abro para vocês”. O que eles procuravam em armários de talheres, ninguém sabe responder. Mas, foi o gatilho para Mãe Bel falar: Chega, saiam, isso não tem lógica. Os agentes ainda a ameaçaram com a acusação de que ela atrapalhava as investigações.
O que os policiais não entendiam, e o que a mãe reforçava, era que o local não era abrigo de bandido. Era uma casa de família, um espaço sagrado, um templo e ninguém, independentemente de religião ou crença, gostaria que pessoas entrassem assim em sua residência. “Sem mandado, ordem judicial, não há justificativa para a forma que eles entraram aqui”. Nesse momento, ela começou a levar os policiais para a saída, até o portão.
— Vocês vão sair daqui. Podem ir procurar ele no rio. Tem onde começa, o meio e fim. Mas, vão sair da minha casa como policiais porque vocês entraram aqui como bandidos -
Depois disso, ela conta que disse aos policiais que Ogum, patrono que protege as forças, os guiaria até a porta.
Ao sair, um dos agentes ainda a questionou. “A senhora sabe que você pode ter uma arma, né?”. Ela afirma que sim, por ser chacareira, mas que ela não pode ter, porque se ela tivesse uma em mãos, ela teria atirado neles. "Não, dona Bel, a senhora não é assassina”. Ela responde com olhos arregalados. “Todos somos, basta sermos acusados e invadidos”. Ao sair, deixaram um telefone para caso acontecesse algo, ela pudesse ligar. Ela solta alto “ligo nada”.
Tudo isso é o relato de apenas uma quinta-feira.
No dia seguinte, sexta-feira, perto do meio-dia, os três estavam almoçando quando, como ela descreve, funcionários da Rotam chegaram ao local. “E esses são terríveis, não têm um pingo de educação”. O filho adolescente foi um dos primeiros a tentar receber os agentes.
— Meu filho, coitado, chegou oferecendo água para beber, perguntando se precisavam de algo. Não que tenha adiantado de algo.
Quando os agentes empurraram o menino, Mãe Bel exaltou: "Não encosta no meu filho!”. Sai de perto dele, foram as palavras dela. Depois entraram no quarto da outra filha, que passava por uma crise. Com os olhos enojados, ela relembra de tudo, dos detalhes. Disse aos agentes que eles não precisavam disso - Abaixem as armas - esbravejou. Porém, a partir daí, começaram as ofensas. “Me mandou calar a boca, me chamou de mulher maluca”. Ela queixa que, nesse momento, os agentes começaram a falar que ela escondia o criminoso. “Ele é da sua religião satânica”.
— Eu disse que não, que não é assim. Minha religião não o esconde e outra todo lugar tem bandido, independe de crença.
Então, ela pediu para que saíssem. “Não forcem minhas portas. Saiam. Vocês não foram convidados”. E foi após esse acontecimento que a mídia e a imprensa entraram em contato com ela.
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Foto de reprodução do Metrópoles.
Na sequência, houve outros casos de invasão. Mãe Bel me contou que também ajudou outros terreiros, como o de uma amiga que também estava viajando e policiais estavam acampando no terreiro. Mas, mesmo depois disso tudo, o que ainda continuam são as marcas desse preconceito. “Eu protejo o que acredito, porque, no final de tudo, a gente descobre que o cabra (Lázaro) é cristão e que a correlação foi feita pela própria polícia? Eu vou defender minha religião até o fim”.
“Eu lembro que me falaram 'você’ faz mal, né?’ e eu disse ‘não, você faz o mal’. Todos nós fazemos o mal, temos a dualidade, bem e mal e estamos propensos a fazer o mal” - Mãe Bel
A história tem vários lados - relato do Pai Francisco
Francisco da Fonseca Filho, 53 anos, mais conhecido como Tatá Ngunzetala, que significa "pai", um título dado para líderes religiosos e sacerdotais, é líder de mais de 30 casas na região. Ele me chamou para conversar em um sábado de manhã. Na ocasião, 9 de outubro, acontecia no terreiro uma festa dos Erês, quando as crianças da comunidade recebem doces e kits de higiene para escovação bucal, além de cestas básicas.
O terreiro é rodeado por famílias, crianças, filhos e filhas de Tatá, com vestimentas brancas, e o sacerdote de amarelo, que mesmo com a máscara conseguia mostrar o sorriso pelos olhos. A festa precisou sofrer modificações para atender os requisitos de segurança contra a covid-19, entre elas a separação das famílias por mesas com distanciamento, a distribuição de doces no final em kits individuais e o cortejo aos Erês sem a parte de comer os doces.
O clima é leve e calmo, as famílias se juntam pela manhã bem cedo para serem recebidas para um café da manhã. Em seguida, acontece um cortejo aos Erês para que abençoe as famílias, principalmente as crianças. Por último, um almoço para a comunidade e a distribuição das cestas, kits e doces. Tudo muito diferente do aconteceu nas semanas de buscas ao Lázaro.
1 dias após o ataque ao terreiro do Pai André
Ao saber que o terreiro vizinho de Pai André havia sido invadido por policiais armados, Pai Francisco teve acesso às notícias divulgadas com fotos do local sendo associado ao satanismo. Fotos que mostravam apenas as divindades, cultuadas há mais de 60 anos pelo sacerdote. “A mídia fez o desserviço de associar essas imagens com a nossa religião e foi aí que tudo piorou”.
Neste momento, como descreve o pai, os policiais começaram a achar supostos rituais na mata todos os dias. “Achavam vários, só não achavam o Lázaro”. Além disso, havia uma mídia que “batia” nessa cobertura de associação do assassino com o satanismo.
“Teve uma despersonificação do Lázaro, para o tornar esse ser místico do mal e associado às tradições afro, o que foi o grande problema pra gente”. Algo que, primeiramente, começou com os policiais e foi ampliado pela mídia que cobria as buscas.
Casas, após casas, foram invadidas, grande maioria de forma violenta, por agentes policiais. Pai Francisco conta que, em média, 12 casas da região receberam algum tipo de visita de policiais. “Pularam muro, entraram nas casas, houve casos de senhoras de idade que se depararam com policiais dentro da cozinha apontando rifles em mãos”.
Na casa do Pai Francisco, não foi diferente.
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Tatá Ngunzetala em entrevista para a reportagem.
Numa noite do dia 19 de junho, mais de 30 homens pularam o muro de seu terreiro, Pai Francisco conseguiu identificar que eram do Batalhão de Operações Especiais (Bope) de Goiás. À noite, a polícia e helicópteros rodearam o terreiro à procura do suspeito. Após a partida da polícia ir embora, o helicóptero continuou no local durante cerca de 30 minutos, rodando baixo e muito perto dos telhados, o que trazia um barulho alto. O pai se lembra do episódio com um olhar frio:
— Parecia uma situação de amedrontamento para não nos mobilizarmos. Estamos sofrendo, neste momento estou falando da dor de muitas casas, sofrendo invasões constantes de polícias de vários comandos, não dá nem para saber qual, violando nossos sagrados, colocando rifles na nossa cabeça sob acusação de que estamos aceitando o Lázaro.
Apenas no sábado, 19 de junho, a polícia invadiu o terreiro liderado por Tatá duas vezes. As perguntas eram sempre "Qual foi a última vez que vimos Lázaro?”. O representante sempre respondia que “não temos nenhuma vinculação, nem nossas casas, nem nossas tradições com crimes e qualquer situação civil que a polícia e a Justiça têm que dar conta”. Nesse caso, por despreparo, pressão, as casas e lideranças de matrizes religiosas foram colocadas sob suspeita.
O líder conta que não via problema de os policiais entrarem, afinal havia mato e córregos ao redor, seria fácil para o suspeito acessar o local. O real problema não eram as buscas, mas a tentativa de acusação sob o pretexto de uma relação do procurado com a religião que, aos olhos preconceituosos da sociedade, ainda é marginalizada e atacada.
— Em teoria, estávamos em uma situação de vulnerabilidade, em um local que o bandido poderia entrar. Éramos para ser protegidos e não os buscados.
Além da abordagem difícil, das falsas acusações e pressão psicológica, o pai de santo teve seu celular vasculhado, sem ordem judicial ou mandado. “O que foi quebrado não foi apenas um direito, mas todos os direitos de um cidadão e, além disso, de um espaço religioso”. No primeiro momento, naquela noite, 19 de junho de 2021, o pai achou que os policiais viriam para proteção, mas diferentemente de qualquer coisa, o que foi presenciado naquele dia foi uma inquisição religiosa.
— Isso foi o que mais me assustou, que momento é esse, o que estamos vivendo? Estamos voltando à inquisição? Vamos, de novo, eleger bruxos e bruxas e queimá-los na fogueira? A história vai novamente salvar quem queimou e não quem foi queimado? É isso? O país não é laico? Então, por que o direcionamento dos policiais tinha um caráter político religioso dominante do Estado?
Após os acontecimentos relatados no dia 19 de junho de 2021, o terreiro do Pai Francisco recebeu visitas seguidas, que duraram cerca de 5 dias. Nas visitas seguintes, as abordagens foram mais amenas, o líder conseguiu oferecer café e mostrar os locais onde os policiais poderiam procurar. No fim da conversa, ele ressalta:
— Nós também queríamos a prisão de Lázaro, mas o que aconteceu não foi certo. Queriam desmoralizar nossa religião, vieram sem distintivo, sem nome e sem identificação. A única coisa que descobri foi que, os que tiveram a abordagem violenta, eram do Bope do estado de Goiás.
Pai Francisco não conseguiu prestar a denúncia, porque não havia provas concretas de que uma agressão psicológica havia acontecido.
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