CAÇADA DE INTOLERÂNCIA: Uma investigação jornalística sobre a violência policial contra terreiros durante as buscas por Lázaro Barbosa
15 de junho de 2021 - Noite de crimes.
A noite do dia 15 de junho seria como qualquer outra no terreiro de André Vicente de Souza, mais conhecido como Pai André de Yemanjá, de 82 anos de idade. Normalmente, o ambiente é tranquilo, sem muita movimentação, marcado apenas pelo som dos grilos e animais noturnos. O céu é iluminado pelas luzes das estrelas e das poucas casas ao redor. O terreiro, templo religioso da umbanda, se localiza numa chácara afastada cerca de 5 km da cidade de Cocalzinho de Goiás (GO). No local, fica o caseiro (que aqui vai ser identificado como João) e, em alguns momentos, Pai André, que, por ser um senhor de idade, costuma ficar mais na cidade de Águas Lindas do Goiás (GO).
Mas, no dia 15 de junho de 2021, o terreiro não foi marcado pelo típico som da noite. A sirene dos carros ecoava por todo o local e o barulho alto repetia sem parar e se alastrava pelas casas ao redor. A noite não era iluminada apenas pelas luzes dos postes ou casas, ou pelas estrelas. No dia 15 de junho de 2021, o terreiro do Pai André era uma explosão das cores azul e vermelho que assustavam os moradores do local.
— Meu caseiro contou que só sabia que era polícia quando viu as luzes, era azul e vermelho, né?
A procura pelo criminoso foragido Lázaro Barbosa, 32 anos, acusado de assassinar quatro pessoas da mesma família em uma chácara em Ceilândia, no Distrito Federal, tinha chegado a exatos sete dias de busca no dia 15 de junho de 2021. Denominado como um dos maiores criminosos da história do Brasil, Lázaro ficou conhecido como o ‘Serial Killer de Brasília’, que impressionava e assustava, por sua habilidade em fuga e conhecimento das terras. A busca tinha mobilizado naquele momento mais de 300 policiais do Goiás e do Distrito Federal. Afora que repórteres dos principais veículos de comunicação do Brasil também pressionavam as forças de segurança por uma resposta.
A noite de 15 de junho de 2021 não pode ser lembrada como o momento em que o terreiro do Pai André “recebeu visitas de policiais”, que procuravam por Lázaro. Na verdade, como descrito por ele, a noite daquele dia ficará marcada pela ação de agentes trajados de preto, que invadiram seu terreiro, bateram no seu caseiro, profanaram seu espaço sagrado e quebraram artigos religiosos. As marcas do arrombamento dos policiais estavam no local, mesmo após três meses da captura de Lázaro, e o Pai André ainda vivia com as memórias daqueles dias.
— Eles arrombaram aqui. Estavam procurando o Lázaro, mas aqui não tinha nada dele não. A gente nem sabia direito quem era o Lázaro. Só sabia o que os vizinhos contavam pra gente. Eu não uso internet e aqui é onde eu cultuo minhas entidades.
O relato do pai de Santo é marcado por lembranças difíceis. Ele recorda, pausadamente e com paciência, como tudo aconteceu. Naquele dia 15, as marcas da intolerância religiosa invadiram seu templo e trouxeram violência para dentro da casa dele.
Já o caseiro João (que não foi encontrado para participar desta reportagem), descrito como homem simples, analfabeto e com problema de disfemia (mais conhecido como gagueira), foi quem sofreu fisicamente a ação desses agentes “da lei”. O advogado do pai André relatou que, algum tempo depois, o caseiro acabou voltando, ou fugindo, para algum estado do nordeste.
— Ele ficou com medo de ficar aqui em Goiás. Não tem o que fazer. Ele não queria ficar mais aqui porque estava com medo de que os agentes voltassem.
O advogado do caso do pai de santo, André Alves, conversou com o caseiro, que estava nitidamente atordoado. Mas, só conseguiu falar com ele depois de três dias, quando foi fazer a ocorrência. O caseiro não sabia ler e não podia identificar quem eram os agentes que estavam no terreiro naquele dia. Além disso, a falta de iluminação e a situação que se encontrava dificultava ainda mais uma possível descrição do que ocorreu no dia 15 de junho de 2021.
16 de junho de 2021 - A notícia.
“Fotos mostram que a casa de Lázaro Barbosa, suspeito de chacina em Ceilândia, tem itens que indicam bruxaria e rituais, diz polícia”. A manchete divulgada pelo portal G1 estampava o site do jornal, mas também viralizava nas redes sociais, como o microblog Twitter. Na matéria, fotos do terreiro do Pai André, mais especificamente das salinhas onde ficavam seus artigos religiosos, eram apontadas como a casa do Lázaro.
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Print do tuite feito pelo G1, no Twitter, no dia 17 de junho de 2021.
17 de junho de 2021 - A tentativa de denúncia.
Numa manhã como “qualquer outra”, o pai de santo chegou ao seu terreiro, como de costume, com vestes brancas e passos calmos. No local, de óculos escuro, por estar se recuperando de uma cirurgia de catarata, o pai de santo encontrou o caseiro “acuado”, machucado e com medo do que vivenciou na noite anterior.
Neste mesmo dia, juntos, decidiram ir até uma delegacia prestar ocorrência. Ao chegarem, o delegado, como descreve Pai André, não disse o que deveriam fazer, apenas que deveriam procurar outro local para fazer a denúncia.
— Ele pediu que a gente fosse para um batalhão, porque não sabíamos identificar quem eram os policiais. Mas o batalhão não tinha nada para resolver comigo.
No local, o pai de santo e o caseiro foram, novamente, tentar fazer uma ocorrência. Após alguns minutos, um soldado o atendeu. O pai de santo contou o que tinha acontecido, contou sobre o terreiro, da situação do caseiro e que estavam com medo, porque não sabiam direito o que estava acontecendo.
— Ele disse que fariam uma investigação de saída e depois nos dariam uma resposta se estava tudo certo e poderíamos ir para casa.
Sem documentos que comprovem que uma ocorrência havia sido feita, sem seus dados coletados, sem o laudo dos machucados do caseiro. Os dois, que não têm muito conhecimento dos regimentos da lei, voltaram para o terreiro na esperança de justiça e proteção.
A ligação… nunca aconteceu.
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